04 março, 2011

Sobre a espiritualidade



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Há pessoas que nos fazem voar. A gente se encontra com elas e leva um bruta susto.  Primeiro, porque o vento começa a soprar dentro da gente, e lá de cantos escondidos de nossas montanhas e florestas internas, aves selvagens começam a bater asas, e a gente não sabia que tais entidades mágicas moravam dentro de nós, e elas nos surpreendem, nós nos descobrimos mais selvagens, mais bonitos, mais leves, com uma vontade incrível subir até as alturas, saltando, saltando de penhascos, pendurados numa asa delta (acho que o nome disto é fé).  Outras, ao contrário nos fazem pesados e graves, pés fincados no chão, sem leveza, incapazes de dança.  Quanto mais a gente convive com elas, mais pesados ficamos, até que nos transformamos em pedras ou em sepúlcros, incapazes de nos mover. A morte é sempre estática, dura.  Por oposição à vida que flutua ao sabor do vento como sementes de paina.
O vôo implica riscos.  Para se voar em asa delta é necessário um ato louco de riscos.  Quem quiser ficar com os pés no chão, em segurança, nunca levantará vão.  Claro, tem medo.  E o medo está relacionado com a morte e a gravidade.  O medo nos faz afundar ... Nietzche disse, certa vez, que se encontrou com o seu demônio e ele lhe pareceu grave e pesado.  E acrescentou: Eu só poderia acreditar num Deus que pudesse dançar.  Eu acrescento: num Deus Vento.  Porque se há uma coisa que o vento faz é dançar ...
Aqui vocês tem que parar de novo, para ver (por favor, levem isto a sério, é ver mesmo).  Evitem a conversa abstrata.  Tenham coragem para ver as imagens que surgem dentro de vocês.  E vejam o que nos torna pesados.  A primeira coisa a investigar é se vocês querem mesmo voar. É altamente duvidoso.  Muito poucas pessoas querem isso.  Voar significa abandonar as certezas e não ha nada que nos atemorize mais.  Preferimos sempre uma vida chata e segura a uma vida excitante e arriscada.  Liberdade é coisa muito doida e doída. Nos Irmãos Karamazov, de Dostoievski, há um diálogo entre o Grande Inquisidor e Cristo em que o Inquisidor diz a Cristo: "-Tu erraste prometendo a liberdade às pessoas. Porque ninguém deseja ser livre: "Ah, você acha que isto é papo furado? Vai aí o teste. A primeira indicação de nossa vocação para a liberdade é o desejo de que os outros também sejam livres. O que quer dizer, liberdade para andarem em seus próprios caminhos. Ficarem livres de mim...
Mas para isto é preciso que eu não pretenda ter a verdade.  Todas as pessoas que pretendem ter a verdade não podem permitir a verdade do outro. É claro.  Se eu tenho a verdade, qualquer pensamento de outra pessoa só pode ser um erro.  E por que razão neste mundo deveria eu permitir que o erro continue?  Todas as pessoas que pretendem possuir a verdade tendem a se tornar inquisidoras, estão condenadas a se tornar inquisidoras.  Elas tem horror ao vento.   Tratam de engarrafá-lo.  Não é isso que as pessoas religiosas, de professoras de escola dominical até o Santo Ofício, fazem?  Isto para não dizermos das formas secularizadas de religião, sejam partidos políticos (o horror à dissidência) movimentos terapêuticos e ideologias...
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 As certezas dogmáticas paralizam a vida e congelam tudo.  Tudo fica solidificado e morto.  Assim somos libertados da angústia de nos movimentarmos internamente.  E o cerebralismo nos defende do contacto com nossas próprias emoções.
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Palavras que nos fazem voar: a Poesia. O discurso científico trata de dizer o mundo como ele é, sob o ponto de vista de sua possibilidade.   Aquilo a que normalmente damos o nome de realidade é apenas uma possibilidade, entre muitas outras. É bom não se esquecer nunca do Guimarães Rosa: "Tudo é real porque tudo é inventado." Não entendeu? Pois trate de prestar atenção à imagens que esta afirmação lhe provoca ... Já o discurso poético não quer dizer este mundo "real"(?) Ele diz o mundo sob o ponto de vista do desejo, aquilo que falta nele.   Isto pode parecer muito estranho.  Mas você teria que pensar seus próprios pensamentos. É isto que nos diferencia dos animais.  Os animais vivem em meio às presenças Mas nós vivemos em meio as ausências.  Desejo: reconhecer que algo esta faltando.  Saudade.  Eu sugeriria que espiritualidade tem algo a ver com isto: viver em meio a presença de um ausência.  E dai que surge tudo o que de belo fazemos: o amor, a poesia, a música, os jardins, as revoluções... Tudo.  Fazemos estas coisas para completar este pedaço que está faltando. Ah, pedaço de mim que me arrancaram... Sou espiritual por causa disto: do meu corpo sai uma canção, um suspiro, um desejo, uma saudade por algo que não encontro e penso que sinto no vento, o cheiro dessas coisas...
Desejo: somos espirituais por causa do desejo.
O desejo aponta para aquilo que está ausente.
E nós, seres estranhos, somos capazes de viver por causa desta ausência.
Não, não é o desejo de uma casa, de uma namorada, de um automóvel ou de outra coisa qualquer ... é aquela tristeza que permanece mesmo quando todas estas coisas pequenas estão satisfeitas.  Nós somos, incuravelmente, pranteadores de algo que se perdeu... e que desejamos reencontrar no futuro.  Mas para isso é preciso saber o nome do desejo.
Acontece que somos banais.  E quando tratamos de falar no nome do nosso Desejo - este grande desejo, nome sagrado, falamos depressa demais, sem nos darmos conta de que não sabemos o seu nome... O Desejo é como o nome de Deus; os Hebreus não podiam pronunciá-lo e por isso mesmo se esqueceram dele.   Se soubéssemos disto falaríamos menos em nossas orações, porque compreenderíamos que a falação é embrulhação.  É preciso descobrir o nome do nosso grande desejo, aquele, por cuja causa, abandonaríamos tudo, aquele que nos faria bem-aventurados.  Mas isto requer trabalho, muito silêncio, muita escuta, muita sinceridade, desaprender a conversar blá-blá-blá.  Aprender a fala poética em que cada palavra é indispensável.
Dizer o nome do nosso grande desejo é orar. É só isto que é orar. O resto é blasfêmia.
Espiritualidade: a busca desse desejo de vida, Desejo perdido, que nos libertaria dos desejos de morte que nos petrificam...
É preciso voar...
Por Rubem Alves

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Quem sou eu

É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou. Meu nome, não importa, nem qualquer outro pormenor exterior meu próprio. Devo falar de meu caráter. A constituição inteira de meu espírito é de hesitação e de dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim; todas as coisas oscilam em torno de mim, e, com elas, uma incerteza para comigo mesmo. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo está cheio de significado. Todas as coisas são 'desconhecidas', simbólicas do Desconhecido. Em conseqüência, o horror, o mistério, o medo por demais inteligente. Pelas minhas próprias tendências naturais, pelo ambiente que me cercou a infância, pela influência dos estudos realizados sob o impulso delas (dessas mesmas tendências), por tudo isto meu caráter é da espécie interiorizada, concentrada, muda, não auto-suficiente, mas perdida em si mesma. Toda a minha vida tem sido de passividade e de sonho". Fernando Pessoa (1888-1935)