Não sou nada




Leonina ao quadrado. Para piorar, na hora em que nasci meu signo ascendente era escorpião. Para tanto sou confusa, redemoinho, discórdia, medo, ansiedade, decisão, orgulho, carência, rainha, líder, riso e lágrima. Na verdade, eu queria mesmo ser tudo isso, mas não sou, não. Filha única de uma mãe linda e heroína. Eu sou muito filha da mãe. Contando 9 meses de gestação, com o bucho nas tampas, foi ao hospital numa noite de 07 de agosto com uma dor de barriga terrível. Pois, pois. Na manhã seguinte eu estava lá, berrando. A cada seis meses eu piso, esmago ou perco meus óculos. Sou míope e astigmática. Até escrever esse texto eu não sabia que a palavra astigmática existia. Já causei suicídio. Ao todo foram 10 óbitos: a maioria morreu de cansaço, obesidade e stress. Houve um que pulou para fora do aquário enquanto eu fui ao banheiro para lavar as pedrinhas e afins. Esse foi traumático. Os dois sobreviventes foram entregues à adoção e criados com amor e carinho dentro de uma bacia. Tive um bonsai. Tenho bicicleta, tênis e gordura localizada. Abandono a leitura no meio do livro, se ele merecer, claro. Releio cartas. Falo sozinha. Tenho medo do escuro. Tenho preguiça de me arrumar. Odeio salto. Eu casaria com o Ariano Suassuna, Rubem Alves, Chico Anísio. Lavaria as cuecas do Caetano, do C. Buarque, S. Jorge, Nando Reis, Bob Dylan. Eu toparia qualquer parada com o Marco Luque, Rafael Cortez, Danilo Gentily. Eu rio. Eu mar. Eu acho graça. A graça me acha. Choro por bobagens. Eu já disse que amava sem amar. Depois descobri que amava, sim. Quebrei um dente pulando corda. Já quebrei os dois braços. Já li a bíblia duas vezes. Se fosse alguma coisa, seria cristã. Já quis matar um professor. Só há uma maneira de descobrir se amo e sou amada: abraçando. É fatal. Evito pessoas super felizes. O riso esconde o choro, choro é aprendizado. Já visitei o fundo do poço. Descobri que há uma mola e voltei. Já achei a luz no fim do túnel. Vez ou outra ela apaga. Tô nem aí pra tecnologia de ponta. Surpreendente para mim é saber queformiga sobe parede, o siri anda de lado e o rabo do calando continua se bulindo depois de cortado. Antes de morrer: mergulho profissional, voar de balão ou asa-delta, América Latina, África, Europa, nessa ordem. Ser professora universitária. Um dia, um dia sofri por ser mulher. Queria ser menina todos os dias. Meus ciúmes e saudades são estranhos: de livros, de comida, de sonhos, de viagens, de pessoas e de pessoas que não merecem nem a pau. Música é vida. Amigos são indispensáveis. Sorvete é bom. Eu acredito que faniquito cura.Eu leio Dostoyevski, Nietzsche, Paulo de Tarso, Freire, C. Ginzburg, Zé das Legnas. Também Paulo Coelho. Quem critica deve conhecer o alvo. Eu acho que Cristo é inteligente e humilde. Acho que o Ronaldinho tem caráter, o Ronaldo é gordo e o Neymar é pato. Acho que doenças de caráter são piores que físicas. Palavras doem. Atos machucam. Feridas profundas nunca curam. Acho que durmo demais, leio pouco e escrevo mal. Acho que odiar não vale a pena. Eu odeio um monte de coisas. Acho que o Hitler era um babaca, que os EUA são uma ferida e que milkshake poderia ser mais barato. Acho que não sei amar. Acho cadernos velhos, panfletos, sacolas, mas nunca achei cinqüenta reais no meio da rua. Eu não sou legal. Me sinto perseguida, sufocada e só. Preciso de um divã. Sou boba o suficiente para deixar ir um grande amor. Na ficção sou Amelie Poulain. Clarice, Lia Luft. G. Marquez me entendem. Eu tenho insônia. Eu esqueço tudo. Eu lembro de me perguntar o que/quem eu sou. Sem nenhuma resposta real, sincera e definitiva, acabo escrevinhando umas doidices. Escrevendo descubro que não sou nada mas tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Viviane Matos

Quem sou eu

É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou. Meu nome, não importa, nem qualquer outro pormenor exterior meu próprio. Devo falar de meu caráter. A constituição inteira de meu espírito é de hesitação e de dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim; todas as coisas oscilam em torno de mim, e, com elas, uma incerteza para comigo mesmo. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo está cheio de significado. Todas as coisas são 'desconhecidas', simbólicas do Desconhecido. Em conseqüência, o horror, o mistério, o medo por demais inteligente. Pelas minhas próprias tendências naturais, pelo ambiente que me cercou a infância, pela influência dos estudos realizados sob o impulso delas (dessas mesmas tendências), por tudo isto meu caráter é da espécie interiorizada, concentrada, muda, não auto-suficiente, mas perdida em si mesma. Toda a minha vida tem sido de passividade e de sonho". Fernando Pessoa (1888-1935)