20 abril, 2011


(...) mania de esperar que as coisas sejam de um jeito determinado, por isso a gente se decepciona e sofre. Na mesa, os livros oferecem consolo. Vontade de ler um troço decente. Mas é preciso passar por uma porção de besteiras até chegar ao que interessa. Vontade de ter um pensamento bem profundo, desses que fazem a gente se surpreender que tenham saído da nossa cabeça mesmo, naquela modéstia que só se tem quando se está distraído - desses pensamentos que nas revistas em quadrinhos aparecem em forma de lâmpada sobre a cabeça do cara. Mas o quê? Sobre a vida, um combate que aos fracos abate e aos fortes e aos bravos só pode exaltar? Sobre o amor, que é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda feira ninguém sabe o que será? Ou sobre a cultura e a civilização, elas que se danem ou não, contanto que me deixem ficar na minha? Tudo já foi pensado: vida, amor, cultura, civilização, liberdade, anticoncepcionais, comunismo, esterilização na Amazônia, exploração das potências estrangeiras, mais que nunca é preciso cantar, guerra fria e vem quente que eu estou fervendo. Tudo a mesma merda. Pudesse abrir a cabeça, tirar tudo para fora, arrumar direitinho como quem arruma uma gaveta. Tomar um banho de chuveiro por dentro.
Caio Fernando Abreu

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Quem sou eu

É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou. Meu nome, não importa, nem qualquer outro pormenor exterior meu próprio. Devo falar de meu caráter. A constituição inteira de meu espírito é de hesitação e de dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim; todas as coisas oscilam em torno de mim, e, com elas, uma incerteza para comigo mesmo. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo está cheio de significado. Todas as coisas são 'desconhecidas', simbólicas do Desconhecido. Em conseqüência, o horror, o mistério, o medo por demais inteligente. Pelas minhas próprias tendências naturais, pelo ambiente que me cercou a infância, pela influência dos estudos realizados sob o impulso delas (dessas mesmas tendências), por tudo isto meu caráter é da espécie interiorizada, concentrada, muda, não auto-suficiente, mas perdida em si mesma. Toda a minha vida tem sido de passividade e de sonho". Fernando Pessoa (1888-1935)