25 julho, 2011

Escritor, o feiticeiro das palavras



O escritor é desalmado que ciranda com sentimentos alheios. Para escrever de verdade, nunca considera os danos que possa causar. E quando pensa no bem que espalha, imagina-se incapaz.
O escritor é doído.  Não conheço nenhum que nunca apanhou de mentores, professores, gramáticos. Esmagados no cadinho do sofrimento, muitos passaram fome; conhecem as bordoadas da vida. Quem não se vale do próprio sangue para desenhar palavras, produz textos insípidos e inodoros. Texto parido sem dor é pinto de incubadora.
O escritor é desvairado. Suas divagações, personagens e mundos não passam de maluquices; mas que maluquices! De onde vem a imaginação que o faz delirar? No transe, enxerga o imperceptível, navega no mistério, descreve o insólito, adensa o intangível. Quem lhe deu faro fino para narrar, com precisão, as contradições na alma humana? Por que suas estórias parecem histórias?
O escritor é porta-voz do sobrenatural. Impossível não suspeitar que por detrás dos melhores textos não haja pacto escondido, eleição misteriosa. Todo o escritor é possesso.  Forças estranhas, aliás, estranhíssimas, o dominam. Esse deve ser o motivo de tanta perseguição aos livros. Ele canaliza uma força que amedronta os amantes do poder. Os livros queimados, os "Nihil Obstat”, os “Imprimatur", atestam o medo dos opressores diante da página impressa, copiada, datilografada, mimeografada, digitalizada, faxeada ou imeilizada.
O escritor é solitário. O lugar de trabalho já o torna asceta, anti-social. Diante do teclado, vira parente de faquir, trapista, anacoreta. Enquanto produz, não considera seu deserto uma privação. Ele adora o silêncio, vive a reclamar dos dias ensolarados e alegra-se com nuvens escuras. Viciado em letras, tudo vira desculpa para trancafiar-se. Ninguém deve se melindrar com escritor de resposta monossilábica. Geralmente, o escritor não tolera alongar conversa.

O escritor é hipnotizador. Seu poder de sedução supera os encantadores de serpentes . Também mágico, consegue ludibriar até crítico literário. Podem xingar qualquer escritor de "bruxo que enfeitiça com palavras" e ele vai considerar elogio. Também não se ofende quando tratado de "padeiro que transubstancia sua carne em pão". 

O escritor é profeta. Docente do céu, interprete de oráculo divino, ele se esmera em construir pontes entre dois mundos: este, empoeirado, e o que transcende, eterno.
Mesmo quando escreve na areia, suas palavras nunca passarão - alguém vai talhá-las nas tábuas do coração.

Por Ricardo Gondim 

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Quem sou eu

É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou. Meu nome, não importa, nem qualquer outro pormenor exterior meu próprio. Devo falar de meu caráter. A constituição inteira de meu espírito é de hesitação e de dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim; todas as coisas oscilam em torno de mim, e, com elas, uma incerteza para comigo mesmo. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo está cheio de significado. Todas as coisas são 'desconhecidas', simbólicas do Desconhecido. Em conseqüência, o horror, o mistério, o medo por demais inteligente. Pelas minhas próprias tendências naturais, pelo ambiente que me cercou a infância, pela influência dos estudos realizados sob o impulso delas (dessas mesmas tendências), por tudo isto meu caráter é da espécie interiorizada, concentrada, muda, não auto-suficiente, mas perdida em si mesma. Toda a minha vida tem sido de passividade e de sonho". Fernando Pessoa (1888-1935)