15 janeiro, 2012

A virtude da lembrança: sobre Alzheimer



Há algum tempo, em minha família, constatamos que um dos membros havia sido diagnosticado com alzheimer. Inicialmente aquela situação nos parecia ‘natural’. Ela compartilhava alguns momentos conosco, víamos seus risos, às vezes se perdia dentro de si mesma, mas reconhecia algumas pessoas e ainda tinha consciência de suas próprias necessidades. Com o avançar do tempo, a rotina ficou bem diferente. Infelizmente, ela já não consegue nomear seus próprios sentimentos e necessidades, abraça os filhos sem saber, se quer, quem está abraçando. Perder-se dentro de si mesma é uma constante.
Às vezes, injustamente, desejamos esquecer os momentos desagradáveis que vivemos ou algumas pessoas que nos machucaram. Injustamente, desejamos até mesmo nunca ter vivido algumas situações. Lembrar é um verdadeiro tormento. Mas, não. As lembranças são nossas digitais, que revelam quais caminhos trilhamos e nos ajudam  a fazer escolhas importantes. Quando lembramos, podemos sentir imensas alegrias, podemos sentir dor, podemos sentir saudade. Isso é uma virtude. O erro não está em lembrar, isso é inevitável. Nosso maior erro é não saber o que fazer com as lembranças.
Quando vejo minha querida tia, que antes esbanjava vaidade, valentia, determinação e independência, percebo o quanto somos vulneráveis as vicissitudes da vida. Somos tão delicados e, infelizmente, não nos damos conta disso e agimos como super herois infalíveis. Somos frágeis e não podemos, sequer, ‘escolher’ como gostaríamos de viver os últimos anos de nossas vidas. A vida, essa nos reserva grandes surpresas, algumas boas, outras ruins. E não adianta as anotações nas agendas, os grandiosos projetos de vida, as economias, os planos grandiosos, se dentro de nós não estivermos preparados para lidar com toda e qualquer situação.
Viver essa experiência trouxe significativas reflexões para mim. A mais grandiosa delas está no fato de haver percebido que o amor é, definitivamente, incondicional. Percebi isso quando me dei conta de que não esperamos, nem devemos esperar, reciprocidade alguma de uma pessoa em estado avançado de alzheimer.  Não entendam isso como indelicadeza. A verdade é que as pessoas acometidas com essa enfermidade enfrentam grandes dificuldades para se expressar verbalmente e sentimentalmente. Às vezes presenciamos choros e risos espontâneos, mas não sabemos  qual fato de sua vida provocou essas reações,  pois já não há palavras para expressá-las. Literalmente.
Sem mais, finalizo esse texto/desabafo sugerindo que tratemos bem toda e qualquer pessoa, mas que sejamos amáveis, sensíveis e gentis com aqueles que perderam suas memórias. Pessoas com alzheimer podem nos ensinar muitas coisas boas e, inevitavelmente,  nos tornam seres mais humanos. Encontrar uma foto, ver a chuva, caminhar, pintar as unhas, adimirar uma flor, contemplar uma formiga podem ser um grande acontecimento para essas pessoas, que todos os dias se surpreendem e percebem extrema beleza nas coisas simples e ‘repetidas’ do cotidiano. Mas não ame por pena, ame-os por serem indispensáveis em sua família, ame-os pelos mesmos motivos de antes, quando ainda traziam suas recordações.

Para entender melhor, indico os filmes Diário de uma paixão e o tocante Longe dela.


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Quem sou eu

É necessário agora que eu diga que espécie de homem sou. Meu nome, não importa, nem qualquer outro pormenor exterior meu próprio. Devo falar de meu caráter. A constituição inteira de meu espírito é de hesitação e de dúvida. Nada é ou pode ser positivo para mim; todas as coisas oscilam em torno de mim, e, com elas, uma incerteza para comigo mesmo. Tudo para mim é incoerência e mudança. Tudo é mistério e tudo está cheio de significado. Todas as coisas são 'desconhecidas', simbólicas do Desconhecido. Em conseqüência, o horror, o mistério, o medo por demais inteligente. Pelas minhas próprias tendências naturais, pelo ambiente que me cercou a infância, pela influência dos estudos realizados sob o impulso delas (dessas mesmas tendências), por tudo isto meu caráter é da espécie interiorizada, concentrada, muda, não auto-suficiente, mas perdida em si mesma. Toda a minha vida tem sido de passividade e de sonho". Fernando Pessoa (1888-1935)